sexta-feira, 7 de março de 2014

O problema da assimetria entre as regras dos regimes de bens no casamento e na união estável - Superior Tribunal de Justiça decide que é válida a prestação de fiança sem a anuência do companheiro

Prezados:

Já se vão alguns anos em que afirmo que o conjunto de regras sobre o regime de bens aplicável à união estável não guarda plena identidade com as regras pertinentes ao regime de bens no casamento. Inclusive, escrevi na minha época de mestrado um pequeno estudo apresentando algumas incongruências e perplexidades acerca do estatuto jurídico patrimonial da união estável. A referência para este nosso trabalho é a seguinte: COSTA FILHO, Venceslau Tavares. Sobre a união estável no direito civil brasileiro: notas históricas e breve análise acerca da problemática do regime de bens. Revista Idéia Nova, v. 3 (2007). Recife: Nossa Livraria, p. 277-294.
Logo se nota esta assimetria entre o tratamento dispensado à união estável e o casamento na própria redação do art. 1.725 do Código Civil brasileiro de 2002: "Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens". Observe-se, pois, que a aplicação das regras relativas ao regime da comunhão parcial na união estável somente ocorrerá "no que couber", e não em sua integralidade. Na prática, isto gera uma disparidade em relação à proteção jurídica deferida ao patrimônio dos convivente da união estável em comparação com a tutela jurídica própria do patrimônio no casamento. Exemplo disto é o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de considerar válida a prestação de fiança sem a anuência do companheiro.
Não é demais lembrar que a penhorabilidade dos bem de família do fiador no contrato de locação é prevista no art. 3º da Lei 8.009/1990, e que o Supremo Tribunal Federal confirmou a constitucionalidade de tal exceção à regra geral da impenhorabilidade do bem de família. Isto significa que se pode considerar válida a prestação de fiança sem ao menos a ciência do companheiro (ou companheira), mesmo levando-se em consideração a possibilidade de penhora do único imóvel residencial dos conviventes na união estável!
Observem, pois, a linha de argumentação do Superior Tribunal de Justiça, conforme texto extraído do sítio eletrônico daquele Tribunal:
"É válida fiança prestada durante união estável sem anuência do companheiro
Não é nula a fiança prestada por fiador convivente em união estável sem a autorização do companheiro – a chamada outorga uxória, exigida no casamento. O entendimento é da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao julgar recurso interposto por uma empresa do Distrito Federal.

“É por intermédio do ato jurídico cartorário e solene do casamento que se presume a publicidade do estado civil dos contratantes, de modo que, em sendo eles conviventes em união estável, hão de ser dispensadas as vênias conjugais para a concessão de fiança”, afirmou o relator do caso, ministro Luis Felipe Salomão.

Outorga uxória

A empresa ajuizou execução contra a fiadora devido ao inadimplemento das parcelas mensais, de dezembro de 2006 a novembro de 2007, relativas a aluguel de imóvel comercial. Com a execução, o imóvel residencial da fiadora foi penhorado como garantia do juízo.

Inconformada, a fiadora opôs embargos do devedor contra a empresa, alegando nulidade da fiança em razão da falta de outorga uxória de seu companheiro, pois convivia em união estável desde 1975. O companheiro também entrou com embargos de terceiro.

O juízo da 11ª Vara Cível da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília rejeitou os embargos da fiadora, mas o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) reformou a sentença.

“Em que pese o Superior Tribunal de Justiça entender não ser cabível à fiadora alegar a nulidade da fiança a que deu causa, ao companheiro é admitida a oposição de embargos de terceiro quando não prestou outorga uxória na fiança prestada por seu par”, afirmou o TJDF.

Como foram acolhidos os embargos do companheiro, para declarar nula a fiança prestada pela fiadora sem a outorga uxória, o TJDF entendeu que deveria julgar procedentes os embargos apresentados pela própria fiadora, a fim de excluí-la da execução.

Regime de bens

No STJ, a empresa sustentou a validade da fiança recebida sem a outorga uxória, uma vez que seria impossível ao credor saber que a fiadora vivia em união estável com o seu companheiro.

O ministro Salomão, em seu voto, registrou que o STJ, ao editar e aplicar a Súmula 332 – a qual diz que a fiança prestada sem autorização de um dos cônjuges implica a ineficácia total da garantia –, sempre o fez no âmbito do casamento.

Se alguém pretende negociar com pessoas casadas, é necessário que saiba o regime de bens e, eventualmente, a projeção da negociação no patrimônio do consorte. A outorga uxória para a prestação de fiança, por exemplo, é hipótese que demanda “absoluta certeza, por parte dos interessados, quanto à disciplina dos bens vigentes, segurança que só se obtém pelo ato solene do casamento”, segundo o relator.

Diferença justificável

Ao analisar os institutos do casamento e da união estável à luz da jurisprudência, Salomão disse que não há superioridade familiar do primeiro em relação ao segundo, mas isso não significa que exista uma “completa a inexorável coincidência” entre eles.

“Toda e qualquer diferença entre casamento e união estável deve ser analisada a partir da dupla concepção do que seja casamento – por um lado, ato jurídico solene do qual decorre uma relação jurídica com efeitos tipificados pelo ordenamento jurídico, e, por outro lado, uma entidade familiar, das várias outras protegidas pela Constituição”, afirmou o ministro.

“O casamento, tido por entidade familiar, não se difere em nenhum aspecto da união estável – também uma entidade familiar –, porquanto não há famílias timbradas como de segunda classe pela Constituição de 1988”, comentou.

Salomão concluiu que só quando se analisa o casamento como ato jurídico formal e solene é que se tornam visíveis suas diferenças em relação à união estável, “e apenas em razão dessas diferenças que o tratamento legal ou jurisprudencial diferenciado se justifica”.

Para o relator, a questão da anuência do cônjuge a determinados negócios jurídicos se situa exatamente neste campo em que se justifica o tratamento diferenciado entre casamento e união estável.

Escritura pública 
Luis Felipe Salomão não considerou nula nem anulável a fiança prestada por fiador convivente em união estável, sem a outorga uxória, mesmo que tenha havido a celebração de escritura pública entre os consortes.

Ele explicou que a escritura pública não é o ato constitutivo da união estável, “mas se presta apenas como prova relativa de uma união fática, que não se sabe ao certo quando começa nem quando termina”.

Como a escritura da união estável não altera o estado civil dos conviventes, acrescentou Salomão, para tomar conhecimento dela o contratante teria de percorrer todos os cartórios de notas do Brasil, “o que se mostra inviável e inexigível”. 

quinta-feira, 6 de março de 2014

Superior Tribunal de Justiça decide que a companheira tem legitimidade para requerer desconsideração inversa diante de possível fraude na partilha dos bens

Prezados:

Acabo de ler no informativo do Superior Tribunal de Justiça sobre uma decisão favorável à tese da desconsideração inversa. O interessante é que, normalmente, os defensores da tese dizem que a regra que dá suporte à desconsideração inversa não é o artigo 50 do Código Civil, mas sim à regra do artigo 187 do mesmo diploma. Assim, o pressuposto da desconsideração inversa seria o abuso de direito, e isto explicaria a remissão ao supracitado artigo 187 do Código Civil. Ocorre que o Superior Tribunal de Justiça parece haver chegado à conclusão favorável à tese da desconsideração inversa, mas entendendo que o caso era de se aplicar o artigo 50 do Código Civil POR ANALOGIA, como se pode ler abaixo: 

"DIREITO CIVIL. LEGITIMIDADE ATIVA PARA REQUERER DESCONSIDERAÇÃO. INVERSA DE PERSONALIDADE JURÍDICA. Se o sócio controlador de sociedade empresária transferir parte de seus bens à pessoa jurídica controlada com o intuito de fraudar partilha em dissolução de união estável, a companheira prejudicada, ainda que integre a sociedade empresária na condição de sócia minoritária, terá legitimidade para requerer a desconsideração inversa da personalidade jurídica de modo a resguardar sua meação. Inicialmente, ressalte-se que a Terceira Turma do STJ já decidiu pela possibilidade de desconsideração inversa da personalidade jurídica – que se caracteriza pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade jurídica propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio –, em razão de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/2002 (REsp 948.117-MS, DJe 3/8/2010). Quanto à legitimidade para atuar como parte no processo, por possuir, em regra, vinculação com o direito material, é conferida, na maioria das vezes, somente aos titulares da relação de direito material. Dessa forma, a legitimidade para requerer a desconsideração é atribuída, em regra, ao familiar que tenha sido lesado, titular do direito material perseguido, consoante a regra segundo a qual “Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei” (art. 6º do CPC). Nota-se, nesse contexto, que a legitimidade para requerer a desconsideração inversa da personalidade jurídica da sociedade não decorre da condição de sócia, mas sim da condição de companheira do sócio controlador acusado de cometer abuso de direito com o intuito de fraudar a partilha. Além do mais, embora a companheira que se considera lesada também seja sócia, seria muito difícil a ela, quando não impossível, investigar os bens da empresa e garantir que eles não seriam indevidamente dissipados antes da conclusão da partilha, haja vista a condição de sócia minoritária". REsp 1.236.916-RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/10/2013. Fonte: Informativo de Jurisprudência do STJ (nº 533, período: 12/02/2014).

Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recurso repetitivo decide que é abusiva a cláusula contratual que obrigue, na hipótese de resolução, a restituição das parcelas pagas somente ao fim da obra ou em parcelas

Prezados:


Há muito tempo se fala no direito do consumidor de se retirar da relação contratual sem sofrer penalidades desarrazoadas ou excessivas. É neste sentido a garantia contida no caput do art. 53 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/1990), que reputa nulas as "cláusulas que estabeleçam a perda total das prestações pagas em benefício do credor que, em razão do inadimplemento, pleitear a resolução do contrato e a retomada do produto alienado". Costuma-se denominar tal disposição contratual que impõe a perda de todas as parcelas pagas nestas circunstâncias de "cláusula de perda total", que é reputada como uma declaração de vontade em desacordo com o sistema legal de proteção e defesa do consumidor. Apesar desta disposição legal  constar do Código de Defesa do Consumidor há mais de duas décadas, muitos fornecedores ainda insistem em fazer constar dos instrumentos contratuais tais cláusulas evidentemente abusivas. 
Contudo, tal disposição legal não sana todas as dúvidas em relação ao direito de retirada do consumidor e seus desdobramentos. Pode-se até mesmo dizer: "Ok! O consumidor tem o direito à restituição de valores já pagos caso em caso de resolução. Mas, o fornecedor pode fixar que esta restituição só ocorrerá após a conclusão da obra, ou em parcelas?" A princípio, parece não existir proibição expressa para que se estipule cláusula neste sentido, mas se pode haurir uma solução a partir das regras do sistema de proteção e defesa do consumidor. Isto porque, sem sombra de dúvida, trata-se de disposição que termina por criar um obstáculo desnecessário para o exercício do direito ao reembolso pelo consumidor, além de se constituir em uma situação que coloca o consumidor em desvantagem exagerada; o que termina por caracterizar tal cláusula como abusiva, nos termos dos incisos II e IV do art. 51 do Código de Defesa do Consumidor. Foi neste sentido que decidiu o Superior Tribunal de Justiça, em sede de julgamento de recurso repetitivo, como se pode ler do texto extraído do sítio eletrônico do STJ:

"DIREITO DO CONSUMIDOR. ABUSIVIDADE DE CLÁUSULA DE CONTRATO DE PROMESSA DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL. RECURSO REPETITIVO (ART. 543-C DO CPC E RES. 8/2008-STJ).
Em contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao CDC, é abusiva a cláusula contratual que determine, no caso de resolução, a restituição dos valores devidos somente ao término da obra ou de forma parcelada, independentemente de qual das partes tenha dado causa ao fim do negócio. De fato, a despeito da inexistência literal de dispositivo que imponha a devolução imediata do que é devido pelo promitente vendedor de imóvel, inegável que o CDC optou por fórmulas abertas para a nunciação das chamadas "práticas abusivas" e "cláusulas abusivas", lançando mão de um rol meramente exemplificativo para descrevê-las (arts. 39 e 51). Nessa linha, a jurisprudência do STJ vem proclamando serem abusivas situações como a ora em análise, por ofensa ao art. 51, II e IV, do CDC, haja vista que poderá o promitente vendedor, uma vez mais, revender o imóvel a terceiros e, a um só tempo, auferir vantagem com os valores retidos, além da própria valorização do imóvel, como normalmente acontece. Se bem analisada, a referida cláusula parece abusiva mesmo no âmbito do direito comum, porquanto, desde o CC/1916 – que foi reafirmado pelo CC/2002 –, são ilícitas as cláusulas puramente potestativas, assim entendidas aquelas que sujeitam a pactuação "ao puro arbítrio de uma das partes" (art. 115 do CC/1916 e art. 122 do CC/2002). Ademais, em hipóteses como esta, revela-se evidente potestatividade, o que é considerado abusivo tanto pelo art. 51, IX, do CDC quanto pelo art. 122 do CC/2002. A questão relativa à culpa pelo desfazimento da pactuação resolve-se na calibragem do valor a ser restituído ao comprador, não pela forma ou prazo de devolução. Tese firmada para fins do art. 543-C do CPC: “Em contratos submetidos ao Código de Defesa do Consumidor, é abusiva a cláusula contratual que determina a restituição dos valores devidos somente ao término da obra ou de forma parcelada, na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel, por culpa de quaisquer contratantes. Em tais avenças, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento.” Precedentes citados: AgRg no Ag 866.542-SC, Terceira Turma, DJe 11/12/2012; REsp 633.793-SC, Terceira Turma, DJ 27/6/2005; e AgRg no  REsp 997.956-SC, Quarta Turma, DJe 02/8/2012. REsp 1.300.418-SC, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 13/11/2013. Fonte: Informativo de Jurisprudência do STJ (nº 533, período: 12/02/2014).